Rodrigo Menezes

O ser humano é provido com uma visão binocular ou estereoscópica, o que quer dizer que temos dois olhos com duas imagens (cada um com a sua visão monocular) que se formam e se sobrepõe para criar a imagem que vemos. Então nos referindo as armas de fogo que necessitam de uma “visada” para que o projétil atinja o alvo que queremos, trata-se do alinhamento da visão, da mira da frente da arma, da mira de trás da arma e do alvo, ou seja, visão + massa de mira + alça de mira + alvo = acerto.

 É valido denotar que certos fenômenos óticos surgem dessa interação: a visão binocular tem um limite lateral e de profundidade que não permite que se foque em mais de um objeto ao mesmo tempo, então nossos olhos só poderiam focar na massa, ou na alça, ou no alvo, nunca em mais de um elemento de uma só vez, seja com os dois olhos abertos ou somente um aberto e o outro fechado. 

Com os dois olhos abertos quando focamos em um ponto, todo restante estará fora de foco e duplicado. Mas quando fazemos a visada com um olho fechado e outro aberto, visão monocular, isso não acontece.

Além disso temos uma “dominância” de um de nossos olhos, então um olho vai se sobressair sobre o outro na preferência do alinhamento com um objeto visualizado a uma certa distância, podendo ser o direito ou o esquerdo não importando se somos destros ou canhotos.

Figura mostrando de cima para baixo: dois olhos abertos; somente o olho esquerdo; somente o olho direito. Conclusão olho direito dominante.

Essa dominância pode ser simétrica (atirador destro e olho diretor direito ou atirador canhoto e olho diretor esquerdo) ou assimétrica (atirador destro e olho diretor esquerdo ou atirador canhoto e olho diretor direito) que é chamado em medicina de “lateralidade cruzada” e não influencia muito no tiro com armas curtas em visadas com um olho só aberto ou do tipo “tiro reativo” com dois olhos abertos, já que com um leve ajuste da cabeça ajustamos o olho dominante a visada em casos de dominância assimétrica[1]


 

Clint Smith do Thunder Ranch demonstrando ajuste de dominância assimetrica.

Para continuar a explanação, faremos uma pausa para conceituar e diferenciar tiro reativo e instintivo.

TIRO INSTINTIVO é uma expressão bastante utilizada e de fácil compreensão. Sem a intenção de fazer juízo de valor negativo ou polemizar o assunto, vale fazer uma reflexão com embasamento científico sobre a terminologia.

Sempre foi intitulado como aquele tiro de sobrevivência (um ou mais) diante de ameaça latente, que se exige a máxima velocidade para acontecer pois há risco morte e em regra é realizado movimentos automatizados.

Entregar algum tipo de resposta com arma de fogo por instinto seria extremamente arriscado, uma vez que as ações instintivas são oriundas da consciência primária cerebral, relacionada diretamente a animais mais primitivos e que não exigem tanta capacidade cognitiva para tomar suas decisões.  A utilização de uma arma de fogo para defesa requer do atirador expertise técnica, psicológica, social e legal. A resposta a um ataque com ações instintivas eleva as chances de danos colaterais a níveis inaceitáveis, pois reflete uma qualidade inata do ser humano despida da aguçada perícia e treinamento continuado exigidos para portar uma arma de fogo. Respostas instintivas sempre serão desproporcionais, descoordenadas e com bastante brutalidade, tudo que não se almeja no uso de uma arma de fogo. (Ribeiro, 2021)

Já o TIRO REATIVO é fruto de uma cadeia de comando neural, resultado de uma habilidade motora consolidada e sedimentada.  A decisão por reagir transitou pelo sistema perceptivo que identificou e discriminou uma ameaça e a necessidade de reação, com utilização dos órgãos sensoriais que passaram a processar esta informação. Deste modo sua memória (engramas neuromusculares) é ativada para selecionar a melhor resposta em forma de ação, tomada de decisão e início da entrega (output) – movimentos corporais, tudo isso com o menor tempo reativo, pois sua vida está correndo risco.  Diferencia-se drasticamente do tiro instintivo por ser uma ação consciente, planejada e totalmente relacionada a experiências prévias de treinamento e alcance do estágio autônomo de aprendizagem

Então, o problema maior em casos de dominância assimétrica é no tiro com armas longas onde o apoio do rosto na coronha da arma impede o ajuste da cabeça e só permite o alinhamento do olho simétrico ao lado da arma. Caso o atirador tenha dominância visual assimétrica ele vai sair prejudicado em uma busca infinita por uma postura de tiro que o permita usar um olho que difere do lado que ele empunha a arma. Isso pode ser resolvido fechando totalmente ou parcialmente o olho dominante, assim o olho não dominante vai assumir essa função e com um pouco de prática se resolve essa discordância podendo inclusive o operador transitar o armamento entre os lados “forte e fraco” sem prejuízo. 

Trocar o lado da empunhadura na arma longa para leva-la ao olho dominante assimétrico gera outro problema de coordenação motora já que aquele lado que o operador é mais apto vai ficar em segundo plano em detrimento de toda uma consciência cognitiva adquirida durante uma vida inteira. 

Outra possibilidade é apenas trocar o lado do apoio de ombro.  Nesta opção, o operador manteria sua empunhadura da mão do punho da arma longa e também a do guarda mão e trocaria apenas a coronha de ombro, levando a arma para o lado do seu olho dominante.  Esta opção é a mais simples, uma vez que qualquer manobra (recarga, sanar panes, entre outras) com a arma já estaria firmada pelo operador, pois este se mantém utilizando as mãos nas mesmas posições consolidadas cognitivamente. 

Ombro invertido

O que é preferível? A resposta é exclusivamente individual e cada operador vai solucionar conforme sua destreza e nível de treinamento.

Para aqueles com dificuldade visual: presbiopia ou vista cansada, lateralidade cruzada, astigmatismo, e outras, eles podem optar por usar miras optrônicas tipo “red dot” (ponto vermelho), prismáticas ou holográficas ao invés de miras abertas que farão com que possam atirar com os dois olhos abertos e focar só na ameaça já que o ponto refletido na lente no interior do aparelho evita o aparecimento de uma imagem distorcida do aparelho de pontaria. A nitidez e o alinhamento do ponto iluminado fazem desnecessários o uso de três pontos (alça, massa e alvo) para o alinhamento do aparelho de pontaria tendo assim maior campo de visão, precisão e rapidez no engajamento do alvo. É prudente à menção de para quem tem astigmatismo a nitidez do red dot, que aparecerá neste caso como uma estrela, asterisco ou em forma de vírgula, será prejudicada sendo preferível o uso de miras prismáticas para distâncias maiores que tem retículos gravados e não projetados na lente sendo assim mais nítidos para aqueles com essa deficiência visual.

O que acontece quando atiramos com um olho só aberto ou os dois olhos abertos? 

Um olho só aberto: só conseguimos focar em um objeto de cada vez, perdemos campo de visão porque o olho que está fechado vai ocasionar a diminuição do ângulo de visão respectivo o que taticamente não é desejável já que deixamos de controlar esse lado visualmente tendo a necessidade de girar a cabeça para poder ver na totalidade. Então se uma ameaça aparecer do lado do olho fechado perdemos a visão periférica para nos alertar do novo perigo iminente. Também sem a visão binocular perdemos a noção de profundidade ficando todos os objetos a nossa frente em um mesmo plano dificultando o discernimento do que está mais perto ou mais longe. Mas em compensação não teremos o aparecimento de imagens duplicadas pois elas se originam de um olho só. É o tipo de visada usada para tiros de precisão onde o fator tempo para disparo e procura de ameaças é maior.

Dois olhos abertos: também só conseguimos focar em um objeto de cada vez, mas ganhamos campo de visão, pois os dois olhos estão abertos. O campo de visão do ser humano é de aproximadamente 180° a frente, cada olho tem em torno de 150° de campo de visão se não movermos a cabeça só restando 30° sem cobertura visual lateral quando fechamos um olho, o que é facilmente testado levando um dedo a frente e deslocando esse dedo pra esquerda e direita enquanto se olha só para frente, enquanto estiver enxergando o dedo é porque ele estará em nosso campo visual. Então o tiro de combate com um olho aberto perderia essa vantagem de ter um maior campo visual. Para diminuir essa desvantagem há quem apregoa o uso dos dois olhos abertos usando o aparelho de pontaria (alça e massa de mira) para atirar em caso de conflitos armados chamando essa técnica de tiro reativo (citado acima), inclusive há a possibilidade de fazer disparos sem realizar qualquer visada em confrontos muito próximo, como no “tiro de entrevista”. Temos também a ocorrência nesse tipo de técnica de tiro a duplicação de imagens causada pela visão binocular o que leva ao atirador que queira usar essa técnica a treinar especificamente para que isso não o confunda e dificulte a sua acuidade no tiro.

A questão de um ou dois olhos abertos é complexa e polêmica. Autores divergem sobre a operacionalidade do procedimento:

Como disse Pellegrini e Moraes: muito se discute sobre a necessidade de se manter ambos os olhos abertos durante a realização de um disparo ou de se fechar um dos olhos e manter aberto apenas o olho correspondente à mão de tiro. A justificativa dos que defendem atirar com os dois olhos abertos é que é importante manter o campo de visão periférica do atirador o mais amplo possível durante o combate. Nós temos a convicção de que, durante o disparo, deve-se manter aberto apenas o olho correlato a mão do tiro e que o foco da visão do atirador deve se concentrar no aparelho de pontaria, mais especificamente na massa de mira. 

Todo o resto, inclusive o alvo estará desfocado ou embaçado. Assim sendo, pouco importa se estaremos com ambos os olhos abertos ou se estaremos apenas com o olho da Mao de tiro aberto. Qualquer analise e avaliação que se fizer do alvo e do ambiente ocorrerá antes da apresentação ou após o follow through, mas, durante o disparo, estaremos focados no aparelho de pontaria e, naquele breve momento, não nos preocuparemos com nossa visão periférica. 

A “vantagem” de um campo de visão mais amplo gerado pela visão binocular grandemente apregoado pelos atiradores, sobretudo operacionais, ou seja, aqueles que dependem de sua performance no tiro para sua defesa própria ou de terceiros são contestados em artigos sobre o funcionamento da visão. Como já visto com um olho só aberto perdemos 30% de visão lateral e a sensação de profundidade pode ser prejudicada, mas segundo Bicas:

Binocularidade, em seu sentido mais amplo, é o termo que se aplica à capacitação de apreender estímulos visuais com dois olhos. Entre as diferentes espécies que possuem esse atributo, os modelos da relação binocular, suas peculiaridades e fins são, entretanto, muito distintos. Enquanto para coelhos a função binocular é a de provimento de campos visuais independentes, garantidos por órgãos visuais de cada lado da cabeça, nos primatas superiores (e no homem), a percepção visual do espaço se dá com base na frontalização dos olhos. Assim, coelhos gozam de uma extensa visão de “campo”, cobrindo 360º, um escrutínio completo do espaço ao redor de seu corpo, o que lhes propicia meios de fuga de predadores. Já entre nós predomina a superposição praticamente completa dos campos visuais. Tal superposição, ocasionando perda de 180º da discriminação visual do espaço (relativamente à do coelho) traria como vantagem, em contrapartida, a capacidade de percepção de “profundidades” de objetos nesse campo visual, isto é, a de percepção das localizações egocêntricas desses objetos (à distância deles ao agente da percepção).

Para enriquecer ainda mais o debate sobre o tema, trago a luz trechos do livro Cognição e Combate (Calaça; Menezes; p.25, 2022) 

Apenas algo em torno de 27% a 32% dos policiais utilizam o aparelho de pontaria de pistola em algum momento, considerando aí também os que utilizam apenas a massa de mira. (ELEUTERIO, 2020 p. 34)

Em situações críticas, que envolvem risco de morte, a adrenalina causa a dilatação da pupila, aumentando a entrada de luz, mas ao mesmo tempo relaxa o músculo ciliar, que achata o cristalino e prejudica a capacidade de focar objetos próximos, como o conjunto do aparelho de pontaria da pistola. Junto com processos psicológicos, isso promove o estreitamento da percepção do campo visual – 70% de diminuição, em média – sendo chamado de Visão emtúnel (WENDLING, 2018 p. 208). 

Da mesma forma, perde-se em situação de exposição ao risco a noção de profundidade, que é dependente da utilização dos dois olhos em conjunto – visão binocular. Diante deste panorama, o fechamento de um dos olhos agravaria ainda mais a visão já comprometida pela elevação dos batimentos cardíacos oriundos do medo. Então, qual é o motivo para treinarmos fechando um dos olhos auxiliando no melhor enquadramento do alvo com o aparelho de pontaria?

Quando treinamos em longas distâncias e utilizamos o aparelho de pontaria fechando um dos olhos, visando um tiro preciso, devemos saber que em situações de estresse elevado ou risco de morte, não conseguiremos manter esta visada com apenas um olho aberto, pois corpo e mente estarão em um estado de hiperatenção[1], praticamente impedindo fechar um dos olhos, como reforça (Eleuterio, 2020 p. 35):

Também se torna quase impossível o disparo com um dos olhos fechados, visto que a própria resposta fisiológica do corpo buscará manter ambos os olhos abertos. 


[1] Atenção acima do normal.

CONCLUSÃO

Treinamos utilizando o conjunto de miras das armas apenas para condicionar nosso corpo e nossa musculatura com a posição correta de enquadramento da sua visão com o aparelho de pontaria, de forma que quando for inserido em uma situação real sua mente já conheça a posição correta onde a pistola ficará posicionada frente a seus olhos para que aconteçam bons tiros, mesmo com ambos os olhos abertos e de forma intuitiva.

Ter referências espaciais também se mostra importante no treinamento de tiro de combate. Sabemos que um tiro reativo que visa salvaguardar a sua vida ou de outrem, não utilizará o aparelho de pontaria da arma, e sim executará todos os movimentos já sedimentados responsáveis pelos fundamentos do tiro com maestria, porém de forma rápida.

E por que treinamos utilizando o aparelho de pontaria da pistola? Justamente para que este movimento e referencial espacial seja apresentado para o atirador de modo que com práticas exaustivas seja inserido no rol das atividades proprioceptivas do seu cotidiano. Quando o atirador e todo o seu corpo conhecem exatamente o local espacial à frente da sua visão onde sua arma realizará um bom tiro, e treina sempre buscando consolidar a posição dos músculos e articulações, sabe ou aprende que precisa utilizar o aparelho de pontaria para consolidar esse processo e efetuar bons e precisos tiros. (Calaça; Menezes, p. 42, 2022)

Essa é a grande importância de aprender cada fundamento de forma detalhada, entendendo sua contextualização e aplicabilidade, para empregá-los de forma satisfatória. Sedimentar cada habilidade motora nova, tornando todo movimento automatizado, requer prática, pois não há outra maneira de criar intimidade com os fundamentos do tiro a não ser praticando de forma lenta e suave, com o objetivo de alcançar que sejam empregados com fluidez e naturalidade. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
  • CALAÇA, Irla; MENEZES, Rodrigo. Cognição e Combate. Fundamentos cognitivos do tiro de combate. 1. Ed. Vitória, ES: Clube de Autores, 2022
  • ELEUTÉRIO, Jose. Si vis pacem parabelum: Tópicos sobre combate e treinamento policial. Campinas: Primeira Edição, 2020.
  • FERREIRA, Rodrigo. Anotações sobre a doutrina policial: Aspectos operacionais. 1. ed. Brasília: Clube de Autores, 2019.
  • MENEZES, Rodrigo. Atire Bem 2. ed. Vitória, ES: Clube de Autores, 2022.
  • PELEGRINI, Marcel; MORAES, Edimar. Tiro de combate. São Paulo: Schoba, 2017.
  • RIBEIRO, Roberto. Manual do Atirador1. Ed. Vitória, ES, 2021
  • ROSA NETO, Francisco et al . A lateralidade cruzada e o desempenho da leitura e escrita em escolares. Rev. CEFAC,  São Paulo ,  v. 15, n. 4, p. 864-872,  Aug.  2013 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-18462013000400015&lng=en&nrm=iso>. accesso  21  Apr.  2020.  https://doi.org/10.1590/S1516-18462013000400015.
  • WENDLING, Humberto. Sobrevivência policial: morrer não faz parte dos planos. Edição do autor. Uberlândia, 2018
  • https://www.bevfitchett.us/guns-07-2009/clint-smith-1.html